17.11.10

Cortesia Zero

sumário das conclusões de exaustivo e cuidadoso estudo científico realizado na minha sala de estar (população: 1)

percepção:

1a. desde a sua chegada ao delta do rio das pérolas, o informante afirma-se atingido por ou testemunha de uma quantidade inusitada de actos de descortesia;


1b. o informante reputa por "uma sorte dos diabos" [sic.] a ausência de marcas físicas permanentes resultantes de: a) encontrões de tipologia diversa; b) recontros forçados com paredes no decurso da sua circulação no passeio público; c) atropelamento (iminente ou efectivo) em passadeiras de peões; d) esmagamento em locais públicos fechados (e.g., elevador, transporte público, centro comercial) ou abertos (e.g. praça, escadaria, rua comercial);

análise quantitativa:

2. cotejando este período de 20 meses com os 28 anos em que o informante residiu noutras regiões do globo, observa-se ser a
incidência de actos de descortesia dirigidos ao participante no delta do rio das pérolas consideravelmente superior quer em termos de token (caso) quer em termos de type (tipo);

análise qualitativa:

3. os actos de descortesia elicitados podem ser classificados nas seguintes categorias:
a) os que contrariam os princípios fundamentais da partilha pacífica de espaço (e.g. persistente mito da opacidade própria, bloqueio de saída de elevador, imobilidade em espaços públicos congestionados, preferência pelo trânsito em passeio público num ponto equidistante das suas extremidades) e recursos (e.g. não-reconhecimento de filas organizadas por ordem de chegada ou qualquer outro critério, recusa de avançar para traseira de autocarro em processo de enchimento); b) os que contrariam a inteligência (e.g. tentativa de forçar entrada em elevador antes da saída de passageiros, tentativa de garantir entrada prioritária em avião/autocarro/comboio/barco com lugares marcados, tentativa de garantir saída prioritária de avião/autocarro/comboio/barco enquanto este ainda se encontra em movimento, avanço em massa para o espaço reservado para a paragem do autocarro forçando o mesmo a imobilizar-se na via de rodagem);

auto-avaliação:

4. confrontado com a proposta teórica de que a elevada densidade populacional possa estar na origem do fenómeno, o participante: a) rebola os olhos; b) emite breve riso sarcástico; c) produz estalido com a língua; e d) profere a fórmula "yeah right"* [sic.].


*Em Ptg. "tá bem, abelha".

5 comentários:

Anónimo disse...

Se aumentarmos a população do estudo para mais uma família (um incremento de 400% na dimensão da amostra parece-me estatísticamente muitoo significativo) consolidaríamos as conclusões do estudo. Para além disso a proposta teórica relacionada com a densidade populacional receberia o seguinte comentário da referida família: e o que é que nós temos a ver com isso? deixem-nos lá passar em paz se fazem favor.

H. Cardoso disse...

Estimado/a anónimo/a,

Fico muito grato pelo auxílio a este estudo pioneiro e importantíssimo. E expresso o meu sincero desejo de que mais e mais informantes se venham a associar a esta empreitada.

Bad Girl disse...

Gostaria de acrescentar caro vizinho a total recusa de aceitação de algumas das mais básicas leis da física por parte dos Autóctones aqui do pedaço.
Saliento a Lei da Intransponibilidade Física desafiada diariamente pelos motociclistas desta terra, e também pelos peões!

H. Cardoso disse...

Precisamente, estimada condómina. Mas coloca-se a questão de saber se a física deste hemisfério oriental se rege pelas mesmas leis do hemisfério oposto. Talvez nos esteja a escapar alguma coisa.

Bad Girl disse...

É que eu tenho toda a certeza que nos está a escapar imensa coisa, e que as leis da física são apenas um exemplo.
Eu tenho aqui para mim que os olhos rasgados proporcionam uma perspectiva diferente sobre o mundo que os rodeia, só assim se explica a dificuldade em medir distâncias (remetendo para a invasão do nosso espaço, os sucessivos encontrões, o "radar" que parecem ter no rabo quando vão à nossa frente e nós nos queremos desviar deles), o fascínio pelas luzes e pela combinação de riscas em sentidos diversos com bolinhas e florzinhas tudo no maior número de cores que a paleta do guarda roupa permitir naquele dia.
Se os olhos rasgados têm alguma influência na interpretação das regras de boa convivência e da vida em sociedade (civilizada) é uma questão sobre a qual ainda tenho que ponderar.